O texto abaixo, escrito por Fabio Mestriner, aponta o significado do desenho desde a pré-história até os dias de hoje. Dele selecionei apenas os aspectos mais significativos que, ao meu ver, apontam o valor do desenho de forma clara e abrangente.
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Desenho a bico de pena, 50x50cm - 2007 Autor: Jane Maria Godoy B. |
O INESTIMÁVEL VALOR DO DESENHO
01/12/2015 ARTIGO POR FABIO
MESTRINER
Embora possa haver dúvidas e
diferentes interpretações sobre suas intenções, o gesto está lá, gravado na
pedra do tempo como registro indelével de que ali estiveram homens. Ainda que
primitivos e no início de sua jornada, eles existiram e deixaram as toscas
marcas que os incluíram na história da humanidade. Os petroglifos, sinais ou
figuras singelas gravadas na rocha são considerados as primeiras expressões
deixadas pelo homem pré-histórico. Algumas destas marcas são imagens
reconhecíveis, é possível perceber homens e alguns de seus objetos, animais, o
sol, a lua, as estrelas…, enquanto outros são sinais abstratos cujo significado
permanece um mistério.
Misteriosa é também a intenção
destes gestos iniciais, que podem ser apenas livre expressão sem outras intenções
que não o desejo lúdico de arranhar e riscar a rocha nua ou uma necessidade
latente de comunicação, ou ainda pode ter sido apenas uma forma de deixar
registros de sua presença nos territórios que habitaram, como a dizer; “Nós existimos, estamos aqui e este é o nosso território”.
O fato é, que desde que se tornou
a espécie denominada “homo sapiens”, o
homem nunca deixou de gravar, desenhar, marcar ou pintar os lugares por onde
andou, deixando um rastro de sua presença pré-histórica por todos os continentes.
A partir do gesto inicial espontâneo, seus registros foram se tornando cada vez
mais nítidos, intencionais, conscientes, reconhecíveis e objeto de contínuo
aperfeiçoamento.
Dos petroglifos às pinturas
rupestres, uma verdadeira odisseia visual foi empreendida por nossos
ancestrais, transformando-se ao longo do tempo em imagens de grande qualidade
expressiva, que puderam então ser compartilhadas com indivíduos de tribos
distantes e até mesmo com aqueles que viveram em outras épocas, pois imagens figurativas
são reconhecíveis por qualquer ser humano de qualquer época ou lugar. Mesmo uma
criança muito pequena consegue reconhecer a imagem de uma vaca, não importa se
em fotografia colorida, desenho animado, imagem em movimento na TV, caricatura,
ícone ou símbolo esquemático. A imagem ou desenho de uma vaca sempre se
reportará ao animal o qual representa e será reconhecido pelos seres humanos
pois seu arquétipo parece já vir gravado na memória da espécie.
Estudiosos das imagens com cenas das caçadas e dos animais pintados em cavernas como Pech-Merle, Lascaux e Altamira, datando entre 25 e 15 mil anos atrás, concluíram que estes desenhos tinham enorme valor para seus habitantes uma vez que possivelmente serviram como imagens votivas em rituais de caça pois seus autores acreditavam que estas imagens lhes davam poder sobre os animais ali representados. Esta suposição não é de todo infundada se considerarmos que de fato acabavam surtindo algum efeito na medida em que aqueles animais que seriam caçados, viviam alheios as combinações e preparativos feitos pelos caçadores diante de suas imagens pintadas nas paredes de suas cavernas.
Estas imagens sem dúvida
desempenharam um papel importante na vida das pessoas que habitaram cavernas e
as ajudaram a garantir sua unidade de ação na caça e consequentemente sua
sobrevivência como tribo primitiva uma vez que o homem não tinha força nem
velocidade para abater os grandes animais que caçava.
“O Homem é um animal que desenha”
A evolução da espécie humana e de
sua capacidade de expressão visual está amplamente registrada e mostra o
caminho percorrido num longo processo onde pequenas conquistas técnicas e
expressivas foram se somando para resultar no exuberante painel das imagens que
contemplamos hoje, deixadas por todos os homens de todas as épocas em todos os
cantos da terra.
A necessidade de riscar, gravar,
desenhar, pintar e registrar foi mudando, assim como suas intenções originais,
mas quando em 1972 a NASA enviou ao espaço a nave Pioneer 10, decidiu incluir
nela uma placa de alumínio banhada em ouro criada pelo astrônomo Karl Sagan que
tinha como objetivo levar imagens e informações que registravam nossa
existência e localização perante alguma forma de vida inteligente que por
ventura a encontrasse no espaço.
Este gesto e sua intenção guardam
forte semelhança com o que foi feito nas pedras africanas por nossos primeiros
ancestrais, afinal, deixar registros para serem encontrados e compreendidos por
outros seres inteligentes pode ser uma das mais importantes ligações mantidas
pelos homens como um legado de sua passagem pelo planeta e uma marca registrada
de sua espécie. Podemos afirmar com base nestes registros, que “o homem é um animal que desenha”, pois a capacidade
de desenhar é uma das principais habilidades que nos tornou diferentes dos
animais que viviam ao nosso redor no primeiro momento de nossa existência
como homo sapiens. Os petróglifos, neste sentido, podem
ser considerados os desenhos da infância da humanidade.
Estas marcas deixadas nas rochas
da África, e a placa da NASA, estão unidas por sua intenção e fazem parte de
uma mesma história, mostram o mesmo desejo de registrar e comunicar nossa
existência. Elas nos contam como o homem encontrou formas de deixar rastros de
sua presença que pudessem ser contemplados e compreendidos por outros homens, e
até mesmo como acreditaram os cientistas da NASA que enviaram a placa ao
espaço, por seres de outros planetas.
Estes rastros formaram uma trilha
percorrida por gerações que foram, num processo de aperfeiçoamento contínuo dos
desenhos, das imagens e formas de expressão, contribuindo para que suas
mensagens fossem cada vez mais e melhor compreendidas.
O mais importante desenho criado pelo
homem
A escrita é a culminância do
processo de evolução do desenho pois devemos lembrar que “letra” é desenho e
que sua criação marca uma baliza no tempo por separar a existência humana em
duas eras distintas, a pré-história (período anterior ao surgimento da escrita)
e a história (período posterior ao surgimento da escrita), pois ela fez com que
o homem pudesse transmitir de forma clara e compreensível seu legado para as
sucessivas gerações e tornou este legado efetivo, evitando que ele se
desvirtuasse pela transmissão oral que vai sendo alterada de um locutor para
outro ou desaparecesse com a perda das pessoas que conduziam a narrativa dos
fatos do passado.
A palavra oral desaparecia no
espaço no momento em que era proferida e só com o início das gravações no
fonógrafo criado por Thomas Edson em 1877 é que ela pode enfim ser preservada.
Já a palavra escrita podia preservar a informação ou conhecimento arduamente
adquirido por tempo indeterminado e podia ser compartilhada por pessoas de
todas as partes do mundo, todas as épocas e pelas gerações que se seguiram.
A prova disto está na existência
de alguns textos antigos que resistiram a passagem dos séculos e que hoje
podemos contemplar em livros guardados nas bibliotecas, eles foram preservados
graças a acontecimentos que podem ser considerados milagrosos, tamanho os
perigos e ameaças que poderiam ter causado sua destruição e desaparecimento.
A escrita tornou-se assim, o
desenho da memória da humanidade, e desde sua criação, a maior parte do que o
homem criou de importante, fez acontecer ou imaginou, está de alguma forma
registrado e boa parte disso conseguiu ser preservado.
A história da escrita nos mostra
o caminho trilhado pelo homem na sua marcha para a civilização pois ela
constituiu ao mesmo tempo a plataforma que sustentou e a trilha por onde passou
o conhecimento que foi gerado.
A intenção e o gesto estiveram
sempre unidos nesta trajetória tendo o desenho como alicerce de todo o
edifício de conhecimento que a humanidade construiu.
A escrita surgiu com a
agricultura, teve uma origem humilde e as placas cerâmicas de Uruk cunhadas na
mesopotâmia por volta de 3.300 Ac relatam principalmente contas agrícolas,
doação de terras e contribuição dos agricultores ao templo desta localidade.
Com a agricultura surgiram também
as cidades e com ela as construções dos palácios e dos grandes monumentos que
exigiram para sua construção um desenho pois tudo o que o homem faz que exige a
participação de muitas pessoas, geralmente precisa da mediação de um desenho.
Um dos mais importantes valores
atribuídos ao desenho está em sua função de trazer para o plano da realidade
ideias que habitavam o plano do imaginário e que através dele baixam a terra e
podem ser compartilhadas com outros seres humanos.
Mas há também a função de
projetar uma ideia, olhar para ela, e aperfeiçoa-la. O pensamento abstrato
encontra no desenho uma plataforma de ensaio, uma forma de pensar e de projetar
que foi sendo aplicada ao longo do tempo no desenvolvimento de objetos,
habitações, edifícios, embarcações, veículos e tudo o que precisou de um
projeto, uma planificação para ser produzido.
A rota da seda e o desenho no valor
A China deu ao mundo ocidental
quatro grandes invenções, o papel, a impressão, a bússola e a pólvora. Esta
inestimável contribuição chegou ao ocidente através da Rota da Seda, uma das mais
importantes rotas comerciais do mundo antigo e que foi utilizada pelo lendário
viajante Marco Polo em 1271/1287. A rota recebeu este nome porque o mais
valioso produto que por ela transitava era a seda, tecido que despertou grande
interesse na Europa graças principalmente a beleza dos desenhos que trazia
estampado.
Por ter inventado o papel no ano
105 e posteriormente a impressão xilográfica em 670, a impressão com blocos de
madeira, como foi denominada a xilogravura, foi também utilizada para estampar tecidos
e foi principalmente a estamparia que ajudou a popularizar o tecido de seda
pois seus belos seus padrões coloridos contribuíram para torná-lo mais
atraente, desejado e valioso.
A seda era a maior riqueza da
China por volta do século XIII e o maior valor da seda era o desenho que nela
vinha estampado.
O desenho desempenhou também
papel muito importante na revolução industrial pois produzir com o auxilio de
máquinas o que antes era feito a mão, exigiu a introdução do que veio a ser
posteriormente chamado de “Desenho Industrial”, uma forma de desenho concebido
para ser reproduzidos no rudimentar maquinário da nova atividade que estava
nascendo.
A necessidade do desenho
concebido exclusivamente para a indústria surgiu não só pelas necessidades
inerentes à produção mas também por questões estéticas uma vez que os produtos
industriais foram considerados “feios” quando comparados a beleza dos produtos
artesanais produzidos por mãos habilidosas de trabalhadores e artistas de
grande talento.
A demanda por profissionais
capazes de dotar os produtos industriais tanto de uma boa aparência estética
quanto da facilidade de reprodução nas máquinas que equipavam as fábricas,
ensejou a criação da escola que seria considerada o berço do que aprendemos a
chamar de “design”, a Bau Haus.
Fundada em 1919, esta escola
reuniu um grupo de professores que se destacavam em áreas como arquitetura,
pintura, fotografia, tecelagem, artes gráficas, cerâmica entre outras. Este
grupo de vanguarda nos legou não só a disciplina acadêmica como também uma
ideologia do desenho pois entre seus fundamentos estava o binômio “forma /
função” pois os pioneiros da Bau Haus pregavam que a forma deve ser resultado
da função que realiza, o que os levou a adotar um padrão de desenho desprovido
de adornos ou de elementos de estilo tão em voga até aquele momento.
Na Bau Haus o desenho industrial
tomou forma e encontrou o caminho que vem seguindo até hoje, um caminho que
acabou transformando o modo de vida do século XX e cuja influência ainda se faz
sentir no século XXI onde o produto industrial já cruzou a fronteira do bem de
produção para ser assimilado pela sociedade como expressão e atributo do
conteúdo.
Muitos dos produtos industriais
de hoje atribuem aos que os consomem elementos de identidade, status e
expressão pessoal que tem em seu próprio desenho e na simbologia visual das
marcas que os assinam algo de expressivo valor. Vivemos na sociedade das
marcas, das grifes e dos ícones, todos eles são desenho e são eles que nos
orientam no oceano de possibilidades e dos produtos que precisamos escolher.
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A palavra desenho vem do Latim
“Designare” que em sua origem traz o significado de “desígnio”. Portanto
desenho tem a ver com desígnio, ou seja:
O desenho é algo que participa e
interfere no destino daquilo que foi desenhado.
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Precisamos prestar mais atenção ao desenho que está a nossa volta, a marca da nossa empresa, dos nossos produtos e serviços, dos objetos que escolhemos para nossas vidas e se perguntar se estes desenhos nos ajudam a alcançar o destino que desejamos.
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SOBRE O AUTOR FABIO
MESTRINER
Professor Coordenador do Núcleo de Estudos da
Embalagem ESPM. Professor do MBA de Marketing da Fundace USP. Autor dos livros:
Design de Embalagem Curso Avançado e Gestão Estratégica de Embalagem
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