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Página de Livro de artista coletivo, inspirado na Divina Comédia de Dante. Criação de Jane Maria Godoy B. |
Reflexões sobre tempos mais ou menos confusos.
Não sei se estou velha demais para
acompanhar a velocidade das mudanças tecnológicas e sociais ou se são tantas e
tão velozes essas transformações que poucos terão a possibilidade de não cair fora
desse trem. A verdade é que tenho a estranha sensação de estar deslocada no
tempo e no espaço. Não é nenhum mistério que comunicar-se tem sido desde a
pré-história uma função das mais complexas. A linguagem é apenas o instrumento
básico desta função e, sem dúvida, insuficiente. A entonação de voz, o olhar, a
expressão corporal do falante e do ouvinte, são elementos complementares,
talvez dispensáveis, mas sempre enriquecedores do entendimento entre pessoas.
Um livro, um artigo de revistas, uma crônica, substituem estes elementos
visuais por uma narrativa coerente, em que as interpretações enganosas são
reduzidas e até mesmo eliminadas pelo conhecimento do contexto e pela qualidade
da escrita. Mas não vejo como chegar a uma compreensão mais profunda entre as
pessoas quando reduzimos a comunicação a meia dúzia de figurinhas e algumas poucas
palavras, quase sempre alienadas de qualquer contexto.
Ao longo de muitos bate-papos nas
redes sociais tenho percebido que só posso dar um significado verdadeiro, por
exemplo, à expressão “oi” quando conheço minimamente a pessoa com que estou
falando, e ainda assim, este simples “oi” pode não dizer nada sobre o estado de
espírito dessa pessoa. Outro dia presenciei uma despedida entre duas amigas que
conversavam na calçada em frente a minha casa. Depois de alguns minutos de
conversa uma delas foi para a porta do carro e, enquanto abria, abanou de longe
para a outra que estava na calçada e disse _ ”Beijo, me liga”. Ora, se eu estou
conversando com uma amiga, cara a cara, costumo despedir-me com um abraço
direto e um beijo ou no mínimo um aperto de mão. Não faz sentido retirar-se e
mandar um beijo de longe, a menos que uma das partes seja portadora de algum
vírus da moda, ou que seja uma conversa entre pessoas desconhecidas. Mandar um
beijo à distância é um hábito moderno, herdado das “tele” - comunicações. Não
nos tocamos mais, não nos olhamos mais e, com certeza, estamos perdendo uma parte
essencial de nossa humanidade. É como se as relações humanas estivessem transformando-se
num vídeo game assustador. Por que assustador? Porque a qualquer momento
podemos desligar a máquina; porque não nos ligamos afetivamente às personagens
do jogo; porque o jogo foi criado por alguém que não sabemos quem é nem onde
pretende chegar. Posso dar mais uma razão – porque todos necessitamos de um abraço
amigo, de um olhar solidário, de afago no cabelo ou de, simplesmente, sentir a
presença amiga de pessoas queridas.
Mas toda essa reflexão foi um caminho
necessário para chegar ao ponto principal de minha conversa comigo mesma. Qual
é o meu papel nesta nova realidade? Onde e como inserir-me no mundo novo? Lembro-me
de uma pergunta que insistia em não sair da minha cabeça quando a Igreja
Católica, da qual eu ainda fazia parte, destituiu a santidade de alguns dos
santos mais venerados àquela época (alguns deles ainda o são). Eu pensei: _ E
agora? Como ficam os fieis que, por anos a fio, depositaram sua fé num ser que
alguém disse que era santo e alguém acaba de decidir que não é mais santo? Pois
uma questão semelhante insiste em penetrar nas minhas preocupações de agora. Preciso desfazer-me de muito valores que guiaram minhas caminhadas pela vida afora. Vivemos uma época conturbada e, mesmo que não goste das teorias da conspiração,
tenho que admitir que talvez eu esteja comprando um estilo de vida que só
favorece interesses de grupos que criam dificuldades para vender facilidades. A
propaganda convence os “consumidores” (é isto que somos) de que cada indivíduo
de uma família deve ter sua própria TV, seu computador, seu carro, seu espaço
absolutamente individualizado – “separar para governar”. Os entretenimentos de
TV ou as redes sociais são rigorosamente programados segundo os princípios do “condicionamento
operante”: bons comportamentos recebem recompensa e geram outros comportamentos
semelhantes. Repete-se o comportamento desejado. Enquanto estamos cada vez mais
presos aos reforços da rede e da mídia, o mundo vai transformando-se num lugar
insalubre. Violência, destruição da natureza, corrupção solta – e não está
concentrada no Brasil, como muitos parecem acreditar – guerras estúpidas, tudo
estimulando intensivamente um gigante da alma humana, o medo. O sentimento que nos oprime e nos mantém trancafiados em casa
ou trancafiados nos shoppingcenter. Poucos se atrevem a protestar e quase
sempre sem entender muito bem sobre o que estão protestando. Quando acontece de
multidões saírem às ruas, como no caso dos acontecimentos de massa que
ocorreram pelo Brasil inteiro, os cartazes deixam claro que são diferentes
motivos que movem aquelas pessoas e, infelizmente, um deles é o ódio, outro
gigante da alma, segundo Mira y Lopes. Não é revolta, não é exigir reconhecimento
dos próprios direitos. São manifestações perigosas porque levam em seu bojo a
semente da guerra.
Minha cidade linda, onde cresci vendo
o sol se por sobre um sem fim de águas; onde eu podia sair a qualquer hora do
dia, ou mesmo da noite, sem medo; hoje está tomada pela violência urbana,
depois de ter sido considerada como a capital com melhor qualidade de vida do
país. Meu Brasil, o país do futuro, parece que não terá futuro algum, tal o
nível de descontrole em que se encontra. Nem vou entrar em considerações
políticas, até porque, o que penso ser política, hoje não passa da sombra de
outro poder – o poder do dinheiro, ou melhor, de que possui o dinheiro.
Enquanto isto, cada vez mais pessoas
se escondem por detrás de seu notebook, do ipad, seu iphone seu aiaiai,
oferecendo-se como alvo de um bombardeio de estímulos ao medo, à revolta sem
rumo, à sensação de impotência diante de fatos que só conhece por imagens, mas
não tem certeza de grau de verdade que sustenta cada um. Sinto-me como um rato
preso na ratoeira. Se vou sair, é perigoso de ônibus porque pode acontecer um
arrastão; é perigoso de lotação porque estão assaltando; é perigoso de taxi
porque tem taxista grosseiro ou, pior, assediando as passageiras. Sair de carro
nem pensar; todo dia tem carros roubados. Mas ainda assim eu decido ser ousada
e vou pra rua. É um risco, tanto quanto é um risco ficar em casa esperando a
depressão chegar. Não fui feita para o isolamento e não é medo da solidão.
Mesmo sozinha, não sofro de solidão, até porque já consegui me dar bem comigo
mesma. Mas gosto de estar com amigos, gosto de conversar olhando para as
pessoas. Pena que até isto esteja comprometido pelo uso dos celulares – uma grande
invenção, talvez uma obra de arte, mas, como todas as grandes invenções, é um
objeto que pode ter usos distorcidos.
Enquanto pensava nessas coisas, a noite
avançou e o cansaço chegou de mansinho. Hora de não pensar nas mudanças
climáticas que tem atormentado o mundo inteiro. Melhor dormir e sonhar com um
outro mundo, que talvez, seja utopia, mas é a utopia que nos empurra pra
frente.
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