Passados alguns meses após os acontecimentos que
levaram milhares de pessoas às ruas na campanha “Não é pelos vinte centavos”, a
greve dos rodoviários em Porto Alegre lembrou-me destas reflexões que escrevi
naquele período de intensas movimentações que atingiram o país inteiro. Relendo
o que escrevi na época, descobri que ainda são válidas e penso que seria
importante dividir com mais pessoas minhas impressões. Aos que tiverem a
paciência de ler, agradeço e peço que me ajudem a ver com mais clareza como posso
participar dessa nova era social que parece estar surgindo. Obrigada!
Reflexões
Começo a escrever sem muita certeza do objetivo ou do
motivo que me impulsiona e com dúvidas sobre minha capacidade de ser
suficientemente clara para me fazer entender. Penso que escrever ajuda a
organizar o pensamento e, por conseqüência, a avaliar com mais propriedade o
momento porque passamos neste meu querido Brasil. Entendo que um país assume
consciência de seu valor quando se torna uma nação, o que inclui um povo com todas
as suas características e identidade própria. Por muito tempo mantive-me
afastada de preocupações políticas. Poderia apresentar várias justificativas,
que não passariam de meras explicações. O chamado “despertar” do gigante está
provocando uma mudança de atitude que vai além de sair da cadeira e ir para as
ruas demonstrar insatisfação. Volto a pensar como ser social e,
consequentemente, político.
Meu trabalho em atelier de arte e criatividade e,
atualmente, com arteterapia tem como base indispensável a sensibilidade. Ser sensível implica em estar atenta para a
realidade que me cerca. Por algum tempo eu via, mas não percebia onde ou quanto
poderia interferir positivamente nesta realidade. Talvez por me sentir impotente
diante do gigantismo da tarefa, talvez por não me sentir segura quanto à minha
capacidade de avaliação, fui me descobrindo decepcionada e desanimada com o que
via. Por algum tempo deixei de pensar na política e passei a olhar para as
pessoas apenas como parte de um contexto social, no qual partidos políticos,
suas manobras, acertos ou acomodação de interesses, pareciam fazer parte de uma
realidade distante. Uma ilusão que convenientemente jogou a sujeira para
debaixo do tapete. Mas a realidade incômoda do aumento desenfreado e
freneticamente estimulado do consumo de “bens” não tão benéficos passou a
ocupar um espaço provocador no meu pensamento. Poluição, acúmulo de lixo,
desmatamentos, contaminação de solo e águas por atividades regulares ou nem
tanto, um “faz de conta que não vi” das autoridades que deveriam fiscalizar o
uso de nossos recursos naturais e humanos, sistema escolar corroído pelo
desinteresse dos governos, saúde pública inexistente, são fatores por demais
gigantescos para serem ignorados.
Confesso que sou meio lenta para elaborar pensamentos,
mas a sensação de estar me transformando em um número e de que gente (ser
humano) passou, num curto espaço de tempo, ao status de dado estatístico, fez
soar um alarme persistente. Vi pessoas, oriundas de diferentes classes ou
culturas, sentindo desconforto quanto a fatos negativos sobre os quais não têm
o menor controle.
De repente protestos em todas as grandes cidades
brasileiras! Estes movimentos de protesto funcionaram como um alarme que
reativou minha atenção para a política. Em poucos dias tentei absorver dados
sobre esta nova face social formando um todo, não muito claro ainda, de dados
sobre sua motivação. De um lado, comentários dão conta da participação das
“esquerdas” para insuflar a desordem, de outro, as direitas infiltradas na “massa”
e financiadas por algum misterioso grupo são responsabilizadas pela mesma
desordem. Sei que é uma pretensão muito grande imaginar que poderia chegar a
uma compreensão dessa realidade confusa. Dependo de informações que chegam até
mim parcialmente (quando não completamente) distorcidas pela visão particular
dos veículos de comunicação. A notícia de ontem, hoje já está desmentida. Em
cada jornal, ao vivo ou no papel, uma face diferente do mesmo fato é
apresentada ao público com os devidos comentários, quase sempre irrelevantes e
distorcidos. A corrupção, como uma gigantesca hera, vai tomando conta e
amarrando todos, de todos os partidos ou vocações políticas, num abraço mortal,
desacreditando qualquer movimento.
Cada tendência política tem sua própria ideia do
que significa “bem comum” e propõe diferentes caminhos para alcançá-lo. A
antiga dicotomia, esquerda x direita tem se diluído em fracassos sociais
gigantescos. Uma observação mais atenta leva à percepção de que cada um dos
extremos “tende” a fazer concessões de conveniência na direção oposta, tornando
difícil perceber, em alguns momentos, as fronteiras que definem uma ou outra
proposta. Por outro lado, se a idéia é liberdade de opões, definir a política
em apenas dois sentidos é uma limitação que impede um olhar mais criterioso na
direção de outras possibilidades. Perceber as injustiças e desigualdades que afligem
as pessoas exige um novo olhar. Tenho visto em todas as mídias, especialmente
nos sites de relacionamentos, pessoas defendendo ou atacando ferozmente este ou
aquele partido político, com críticas a atos ou à falta deles. Ataques
pontuados geralmente por argumentos mais passionais do que racionais e baseados
em informações manipuladas que não resistem a uma simples consulta aos dados
oficiais. E isto acontece em todas as direções. Não sei se perdemos ou se nunca
tivemos consciência do que significa CIDADANIA.
Partidos e sociedades são constituídos por
indivíduos bons e maus. Há diferenças entre grupos de interesses, entre grupos
etários, entre classes econômicas e, em cada um desses grupos, as atitudes
podem mudar em momentos diferentes. A sociedade é dinâmica e são as diferentes
formas de ser e de agir que fazem a riqueza de um povo. Não faz sentido
imaginar que todos têm que torcer pelo mesmo time ou votar no mesmo partido ou
no seu oposto. Cada um cresce com suas experiências particulares, tornando-se
um adulto que traz para o presente suas aquisições durante este crescimento. Em
alguns pontos, nossas histórias particulares se cruzam com outras histórias
vividas simultaneamente com pessoas próximas e com outras que nem conhecemos. Esta
memória coletiva é vital para alimentar a identidade de um povo e para lembrar-nos,
a cada momento, quais eventos resultaram em quais sucessos ou fracassos.
Nossa memória coletiva vem sendo mimada e minada
pelo incentivo ao consumo desenfreado de todo tipo de “bens”; incentivo que tem
como foco o individualismo. Carentes de educação – cuja maior seqüela é a falta
de senso crítico – somos alvos fáceis para manobras de todo tipo. A sociedade
de consumo desconhece valores essenciais de convivência. Fui a um jantar onde se
reuniram cinco pessoas adultas. Em um dado momento percebi que ninguém conversava.
Três dos convidados estavam ocupados conferindo seus tablets, o quarto
convidado olhava a TV. Em poucas ocasiões eu me senti tão fora de contexto.
Isto é um pequeno exemplo do comportamento da maioria dos grupos
atualmente.
Se por um lado, a comunicação jamais foi tão
extensa nem tão rápida, por outro, temo que nunca tenha sido tão
despersonalizada e descomprometida. Pessoas de uma mesma família conversam
pouco entre si; cada qual tem seu pequeno mundo isolado num quarto onde, uma
parafernália de equipamentos, sempre de última geração, cria a ilusão de que
temos tudo, e, o que é mais grave, de que não precisamos de ninguém real.
Vivemos um mundo virtual, manipulado por mãos invisíveis. Um mundo que
transforma líderes em bem de consumo, esvaziando seu significado. A fome de
lucros explora nosso lado mesquinho em detrimento do caráter social da espécie
humana.
Só entendi meu espanto ao ver tanta gente nas ruas,
unidas em torno de um objetivo comum, quando pensei em tudo isto e não
encontrei uma explicação plausível. Estas pessoas de repente se descobriram
povo? Do nada perceberam que a verdadeira força vem do grupo? Não faz muito
tempo assisti uma entrevista pela TV em que um cientista social, cujo nome não fiquei
sabendo (só vi metade do programa), falava sobre a internet e seu poder. Dizia
ele que a criação da internet aconteceu como meio de controle, durante a guerra
fria, quando que era necessário passar informações sigilosas, mas ao tornar-se
de uso geral, passou a ser uma arma poderosa que propicia acesso instantâneo e
sem filtro (?), a todas as ocorrências mundiais. A criação escapou do controle
do criador e criou vida própria. Ouvi várias declarações atribuindo às redes
sociais a organização dos movimentos de protesto que estão ocorrendo. Se isto é
real, é como diz o velho ditado – “o feitiço virou contra o feiticeiro”. O
instrumento que deveria isolar juntou. Só que juntou indivíduos que não
aprenderam a pensar em grupo. Há um objetivo, na verdade muitos objetivos
comuns, mas ainda não há um consenso sobre prioridades ou caminhos a tomar, nem
como percorrer esses caminhos.
Ao vivenciar as ações e reações desta última
semana, passei por vários momentos, desde a empolgação inicial de “finalmente
descobrimos que temos força” até o momento prudência, em que percebi que há uma
diferença enorme entre povo consciente sobre o que deseja e organizado para
consegui-lo e a ingenuidade da massa despreparada e eufórica que lança seu
protesto sem avaliar a força de reação do outro lado.
As reações não demoraram. Depredações programadas,
tumulto, violência e divisão de intenções. A meu ver, a parte preocupante
destas reações é o surgimento de “lideranças” ou movimentos partidários convenientemente
dissimulados. Senti uma desconfortável sensação de que estas interferências
desestabilizadoras têm elementos historicamente perigosos. Já vi as injustiças
e dores de uma ditadura e espero não ver nunca mais. Preciso crer em valores
universais de respeito à vida, convivência harmônica e de direitos iguais. Ainda
não tenho ideia sobre que rumo vai tomar este movimento, mas insisto em acreditar
que, apesar de tudo, podemos aprender rápido e que, se duas cabeças pensam mais
do que uma, milhões de cabeças juntas, podem descobrir não um, mas muitos
caminhos para fazer desse país um lugar para viver melhor; mas precisamos aprender
a pensar juntos. E isto já é uma outra história.
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